segunda-feira, 4 de maio de 2015

Peça de teatro - Sobreviventes

Aos alunos do Delce Horta e todos aqueles que se interessarem em encenar...



CENÁRIO
         Apenas um banco estará presente em cena. O vazio e a penumbra do ambiente devem provocar a sensação de luto e concentrar as atenções para as personagens. A iluminação deve ser feita apenas por um spot.

PRÓLOGO
         A cortina se abre e no palco está o narrador. Ele deve fazer a ponte entre o presente e o passado, deixando claro o objetivo da peça. Sua voz deve ser firme e forte, transmitindo toda a emoção que marca o espetáculo.

Narrador: No início deste ano de 2015, o jornal francês Charlie Hebdo sofreu um ataque covarde que matou 8 jornalistas em sua sede, em Paris, além de outras pessoas, um atentado que chocou o mundo. O que os matou se resume em uma palavra – INTOLERÂNCIA. Sim, isso tirou a vida deles. O “crime” cometido foi usar a liberdade de expressão para fazer charges em referência à religião islâmica, assim como faziam com tudo e todos. Alguns extremistas decidiram que deveriam dar um basta, impor respeito, ou medo, talvez, afim de evitar novos desenhos.
Eu e o mundo perguntamos como um simples desenho é capaz de gerar tanto ódio.
Nas manifestações em repúdio a este ataque, nas ruas e nas redes sociais, este foi o cartaz que mais se viu [mostrar a placa com os dizeres: Je suis Charlie]. Quer dizer: eu sou Charlie, em francês. Todas essas pessoas queriam dizer que elas tomavam partido do jornal, defendendo a liberdade de expressão e condenando a intolerância demonstrada com as mortes.
O ódio que marca o que acabei de falar é recorrente na História. Poderíamos citar inúmeros fatos em que a humanidade se viu diante de uma grande brutalidade. Alguma pode se equiparar, mas dificilmente será maior do que aquilo que você vai assistir agora.
Serão 4 histórias de vida, morte e renascimento. E vocês sairão daqui com uma missão.


 ATO 1
Uma música começa a tocar. A cortina está fechada e se abre lentamente. As personagens estão atrás de uma divisão no palco. Deverão estar vestidos de preto. A música diminui até não se ouvir. Ainda sem entrar no palco as personagens começam a falar.

Ester: No início da década de 1930, o nazismo tomava conta de um país arrasado pela primeira grande guerra e pela Crise de 29.

Rute: Os judeus foram considerados culpados pela situação difícil.

Rebeca: A Alemanha estava fragilizada, e o discurso de Hitler conquistou o apoio necessário para chegar ao poder.

Aleksander: E o ódio nazista estimulava a perseguição aos judeus. Sabem o resultado disso?

Ester: 6 milhões!

Rute: 6 milhões de judeus!

Rebeca: 6 milhões de judeus foram assassinados!

Aleksander: 6 milhões de judeus foram assassinados pelos nazistas.


ATO 2
            Novamente uma música é ouvida. A primeira personagem entra no palco através de uma abertura no pano que o divide. A música diminui até parar. Nesta primeira parte, todas as 3 alunas entrarão juntas no palco e cada uma contará uma parte da história da Ester.

A primeira aluna dá um passo à frente e começa a falar, enquanto as outras permanecem paradas, de cabeça baixa.

Ester 1: Meu nome é Ester. Sou austríaca e judia. Eu tinha mais ou menos 30 anos quando o nazismo conquistou o poder na vizinha Alemanha. Nesta época eu já era professora, profissão que me formei desde o 18 anos. Quando era pequena me lembro de brincar no quadro negro com as outras crianças. Sempre gostei muito de estudar. Cresci sabendo que ensinar era a minha vida. [satisfação no rosto, orgulho] Achava que a educação era o bem mais precioso que uma pessoa podia ter. Ninguém tira um conhecimento de você, nós carregamos a vida toda o que aprendemos.

Meus pais eram muito bons comigo. Eles já estavam perto da casa dos 60 anos. Deus sempre nos ajudou e possuíamos uma boa condição de vida. O mesmo acontecia com o restante da família.

Eu era a única mulher entre os filhos. Confesso que era um pouco mimada [esboça um sorriso] Meus quatro irmãos sentiam ciúmes de mim. Coisa de irmão que se sente rejeitado. Acho que acontece em todas as famílias. Mal sabiam eles que iríamos passar por uma rejeição mil vezes pior.

A primeira aluna volta para a parte de trás do palco, ainda em cena.
A segunda aluna dá um passo à frente e começa a falar, enquanto as outras permanecem paradas, de cabeça baixa.

Ester 2: Pela minha profissão, eu já tinha conhecimento sobre o nazismo, sabia das suas ideias e sempre alertei a minha família quanto aos seus perigos. Meus pais tinham muitas riquezas no país e não aceitavam sair de lá. Acabei ficando também. Mas sempre falava que um dia a situação iria ficar séria para o nosso lado, que o Hitler era antissemita, não gostava dos judeus. Ninguém achava que ele teria coragem de fazer o que fez. [fisionomia fica bem séria]
Lembro que as coisas aconteciam muito rápido. Parece que as pessoas foram hipnotizadas. Começou toda aquela discussão de raça ariana. Os povos germânicos, como os alemães, eram considerados de uma raça superior. Diziam, repetindo Hitler, que a Alemanha deveria formar um império com os povos de raça pura. As raças inferiores deveriam ser exterminadas para não contaminar as gerações arianas. [fica nervosa, balança a cabeça negativamente]
E mesmo eu sendo austríaca, o mesmo país de Hitler, era colocada no mesmo grupo das aberrações, já que eu era judia. Vejam só [continua a discordar com a cabeça]... aberração! Como pode o fato de eu ser judia significar que sou inferior? De onde é que estes loucos tiram estas ideias? Somos todos de uma só raça – a raça humana. Todas as outras diferenças entre nós são culturais. Qual é a diferença entre uma pessoa com cabelo e outra careca? Qual é a diferença entre um alto e um baixinho? Não há nada que possa comprovar a superioridade de um ou de outro. [pequena pausa] Aberração! Aberração são os que pensam desta maneira.
Ah, meu povo! [olha para o nada, desiludida] Fomos perseguidos durante séculos. Não merecíamos! Quantas gerações deixaram de nascer por causa do ódio. Pra que tanto ódio? Até que ponto o ser humano é capaz de chegar!
Quando o Hitler anexou meu país, começou a surgir um monte de leis. Fui proibida de dar aulas, cassaram o meu diploma de professora. Tiraram o que havia de mais importante na minha vida. Diziam que uma judia não tinha nada a ensinar ao povo alemão. Perdi a minha profissão! O que eu faria dali em diante?
Uma outra lei proibia o relacionamento entre alemães e judeus. A justificativa? Não se podia permitir que filhos impuros nascessem. Somente pais arianos poderiam gerar filhos arianos. [olhar saudoso] Eu lembro que tinha um vizinho alemão, muito bonito, que eu era apaixonada. Ele retribuía alguns sorrisos. Não sei se gostava de mim. Mas minhas esperanças terminaram nesta época. Se fossemos pegos namorando, nós dois seríamos presos. Um absurdo!
Os nazistas também passaram a nos obrigar a somente andar nas ruas identificados como judeus. Uma estrela de Davi tinha que ser colocada como braçadeiras em nossas roupas. [passa a mão pelo braço] Quando passava algum soldado nazista na calçada que estávamos, éramos obrigados a passar pela rua.
E como os soldados gostavam de maltratar os judeus! Um dia, estava passando numa rua com dois primos e meu irmão. Quando os soldados nos viram, começaram a nos arrastar para o meio da rua... nisso juntou um monte de pessoas para ver o “espetáculo” [falando com ironia] Fizeram os meninos tirarem suas camisas e com elas limparem o chão. Nunca havia sentido tanta vergonha na minha vida. Todos nos chamavam de porcos, imundos e riam, riam muito, se divertiam com a nossa humilhação.
Certa época, Hitler ordenou que ficássemos em guetos. Era sempre a pior região da cidade, suja, abandonada. Agora seria a casa de milhões de judeus.
Éramos retirados de casa sem que pudéssemos ter tempo de arrumar nossas coisas. Não podíamos levar móveis, jóias e outros bens materiais. Claro que muitos escondiam e conseguiam levar. Meu pai juntou todo o dinheiro que tinha em casa. O que estava no banco acabou nas mãos do governo. Um roubo!
Uma das lembranças mais tristes que tenho deste momento é quando nossa família andava pela rua em direção ao gueto. Colegas da época da escola, vizinhos, ex-namorados, amigos, não importa que vínculo tivesse com os judeus, todos assistiam com alegria a nossa tragédia. Muitos nos xingavam, outros aproveitavam para invadir nossas casas e lojas para roubar o que podiam. Parece que eles estavam aliviados, agora não faltaria mais casa e empregos para os verdadeiros arianos. [suspiro profundo] Até que ponto o ser humano é capaz de chegar!

A segunda aluna volta para a parte de trás do palco, ainda em cena.
A terceira aluna dá um passo à frente e começa a falar, enquanto as outras permanecem paradas, de cabeça baixa.

Ester 3: Quando chegamos ao gueto eu já estava no meu limite. Não entendia como havíamos chegado naquela situação. O que iriam fazer conosco?  Haveria como sofrer mais do que já tínhamos sofrido?

No mesmo dia em que nos obrigaram a ir para o gueto, fui falar com um oficial nazista. Assim que cheguei perto dele recebi a ordem para sair. Insisti que tinha uma coisa importante para falar com ele. No mesmo instante, ele retirou uma arma do uniforme e apontou pra mim. Não tive medo, tinha que insistir, pois sabia que talvez fosse o único momento que conseguiria falar com um oficial. Disse que era professora, que no gueto havia muitas crianças e seria uma atitude bondosa da parte dele autorizar o funcionamento de uma escola para os menores. [pequena pausa] Ele me olhava, ainda com a arma apontada para mim, quando esboçou um sorriso. Pensei que estava conseguindo convencer e continuei a falar. [pausa]

[baixa a cabeça] Foram minhas últimas palavras [pausa] Só me lembro de ainda ter ouvido: vermes não aprendem nada!

[emocionada, sem choro] Não me arrependi de ter feito aquilo. Já havia sofrido muito. Não aguentaria mais aquilo. Minha vida era o ensino. Sem ele não tinha razão para viver. Nunca mais eu tive numa sala de aula, mas coloquei na cabeça que poderia continuar ensinando, mesmo sem vida. Pois o que me tiraram é feito de carne e osso, perdi o meu corpo. [aumenta a voz] A minha memória eles não podem matar. Continuo ensinando, para quem quiser aprender. Ensino que o preconceito e a intolerância levam ao ódio e que o ódio leva a morte.  Ensino... a paz... simplesmente.
Eles podem ter me matado, mas eu ainda vivo! [em voz alta, firme]

As 3 alunas voltam para a coxia lentamente, enquanto a música sobe.

ATO 3
            A música continua. A segunda personagem entra no palco através de uma abertura no pano que o divide. A música diminui até parar. Nesta primeira parte, todas as 3 alunas entrarão juntas no palco e cada uma contará uma parte da história da Rute.

A primeira aluna dá um passo à frente e começa a falar, enquanto as outras permanecem paradas, de cabeça baixa.

Rute 1: [entra em cena e anda lentamente até o centro do palco] Eu sou a Ruth. Sou polonesa e judia. Tinha 12 anos quando a guerra começou. Eu era apenas uma estudante, assustada em ver o meu país ser invadido pelos nazistas.

Minha mãe morreu no meu nascimento. O médico chegou a dizer que havia muito risco no parto, que talvez a vida dela corresse perigo. Mas ela não pensou duas vezes. Deu sua vida por mim. Sempre que me lembrava dela, olhando algumas fotos antigas, [faz o gesto como se estivesse vendo a foto] imaginava como seria tê-la ao meu lado. Queria tanto ser como qualquer menina, vendo sua mãe se maquiar, se vestir, arrumar o cabelo, tudo pra depois imitar. [pausa] Eu nunca tive isso.

Fui criada pelo meu avô. Meu pai saiu um dia pra trabalhar e nunca mais voltou. Eu era bebê e não me lembro. Até hoje não se sabe se ele morreu ou fugiu pra outro lugar. Acho que no fundo o meu avô sabe a verdade, mas pensa que sou muito nova para entender estas coisas.

Meu avô? [fala com satisfação] É a única pessoa que tinha. Era a minha família. Ele me ensinou tudo. Só nunca tinha me dito que as pessoas podiam ser ruins, fazer maldades. Isso ele nunca tinha me ensinado, eu aprendi sozinha.

A primeira aluna volta para a parte de trás do palco, ainda em cena.
A segunda aluna dá um passo à frente e começa a falar, enquanto as outras permanecem paradas, de cabeça baixa.

Rute 2: [entra em cena e anda lentamente até o centro do palco] Um dia meu avô me acordou com pressa, estava pálido, nunca tinha visto ele daquele jeito. Saímos de casa tão rápido que nem tive tempo de pegar a Sofia, minha boneca preferida.
Fiquei bem assustada com tudo aquilo. Nós andávamos em fila para um lugar longe, com um muro alto. Passávamos por cima de uma passarela pra chegar do outro lado. As pessoas chamavam de gueto o lugar que seria a minha casa dali em diante.
No início, tínhamos que achar um lugar pra ficar. Como éramos só eu e meu avô, não foi difícil achar um quarto. Ficávamos juntos com uma família de cinco pessoas. Entre eles tinha uma bebezinha muito fofa. Não lembro bem o nome dela, até porque eu só conseguia lembrar da minha boneca quando olhava pra ela. O bebê ficou sendo a minha Sofia. A Sofia de verdade!
Meu avô já estava bem idoso e tinha um problema nas pernas, não sei bem o que era, mas às vezes ele reclamava de muitas dores.
Como ele não podia trabalhar, recebíamos a menor quantidade de alimentos. Muitas vezes era um pão velho, duro e esverdeado. [faz cara de nojo] Não cheirava bem, mas comíamos de tanta fome. Outras vezes era batata que recebíamos. Meu avô cozinhava e comíamos como se fosse a melhor das comidas. Era melhor que o pão.
De vez em quando os nazistas passavam gritando para que todos os adultos saíssem de casa. Eram as seleções para trabalhos fora da cidade. Nestes momentos eu ficava gelada, morria de medo de levarem meu avô. Todos nós ficávamos em silêncio, espremidos em um esconderijo atrás do armário. Sempre dava certo.
Estas seleções de trabalho eram bem estranhas. Os caminhões que levavam os judeus voltavam sempre vazios, ninguém nunca voltava pra ver a família. E sempre precisavam de mais gente. Estranho porque eu ouvia as pessoas reclamarem que não tinha emprego. [fala tentando entender a situação]
Algumas pessoas diziam que não era trabalho. Falavam que era pra enganar os judeus, pra gente não se revoltar... na verdade, todos eram levados para um negócio de campo de concentração. Não sei bem o que era, mas devia ser ruim. Ninguém queria ir pra lá. E olha que viver no gueto era horrível.
Como a comida era rara, muitas pessoas passavam fome. Eu mesma sentia dores no estômago de vez em quando. [colocando a mão na barriga] Tinha gente que não aguentava e morria. Nas ruas, todos os dias se viam gente morta, apodrecendo pelo caminho. A fome matou muitos judeus no gueto. Elas se deitavam na rua e perdiam as forças para levantar. Uma coisa muito triste. Sem contar as doenças que se pegava por estar tão fraco. As pessoas emagreciam até ficarem somente pele e osso.
Com os corpos nas ruas, vinham também as pragas. Ratos e baratas eram comuns nos guetos. Não tinha uma pessoa que não tivesse contato diário com estes bichos. Pulgas e piolhos invadiam as casas. As crianças eram as maiores vítimas. Eu mesma tive o meu cabelo cortado por causa dos piolhos. [passa as mãos no cabelo]
Passado um bom tempo nesta condição, chegou a pior dia da minha vida. [rosto fica bem triste] Numa destas passagens dos nazistas, mandando que as pessoas se apresentassem, o meu avô estava na rua. Tinha ido buscar comida. Ele já estava bem magro, parecia outra pessoa, perdeu uns 30kg. Quando foi abordado, disse que não podia trabalhar, mostrando as pernas com problema. O soldado não pensou duas vezes... [pausa] meu avô não teve chance de reagir. [pausa]  Assisti aquela cena da janela. Vi minha família terminar naquele dia.

A segunda aluna volta para a parte de trás do palco, ainda em cena.
A terceira aluna dá um passo à frente e começa a falar, enquanto as outras permanecem paradas, de cabeça baixa.

Rute 3: [entra em cena e anda lentamente até o centro do palco] Depois da morte do meu avô, confesso que não tinha mais vontade de viver. Não tinha mais ninguém. Ainda me distraía com a Sofia, mas não era a mesma coisa que ter alguém da família por perto.

Passados alguns meses, começaram a levar todos embora dos guetos. Eu, a Sofia e a sua família ficávamos escondidos. Uma destas vezes, uma equipe de soldados invadiu a nossa casa. A Sofia chorava muito e seus pais taparam a sua boca com um pano. Enquanto isso os nazistas reviravam as coisas, buscando algum sinal de vida. Qualquer barulho naquele momento seria mortal. Quando eu olhei para o bebê, vi o seu rostinho ficando roxo. [pausa] Estava morta! [pausa] Morreu sufocada com o pano. [pausa] Na hora eu não me contive e deixei escapar um gemido, quase um grito. No mesmo instante os pais da Sofia também taparam o meu rosto. Ainda ouvia os soldados quebrando tudo do lado de fora. Comecei a ficar tonta sem o ar pra respirar. [pausa] Aos poucos o som foi diminuindo, diminuindo, até que não ouvimos mais nada. Neste momento, ainda sufocada decidi sair. Um soldado que havia voltado me viu e me levou.

Tudo aconteceu tão rápido que não consigo nem dizer quanto tempo durou a viagem, só sei que quando eu me vi já estava no que eles chamavam de Campo de Concentração. Mal cheguei e os soldados começaram a fazer filas, todas de meninas novas como eu. Disseram pra nós que estávamos fedendo. Um deles ainda gritou: [imitando um soldado] “Judeus sempre fedem”. E falaram que prepararam um banho pra nós.

Aquilo era meio estranho pra mim. Eu não devia primeiro conhecer onde eu iria ficar? Eu estava muito cansada pra tomar banho. Só pensava em dormir. Mas fomos todas nós para o tal banho. Chegamos a uma grande sala, fria e sem janelas. Só conseguia ver alguns buracos no teto e um negócio que só podia ser a ducha onde saía a água.

Quando nos trancaram, estávamos lá, todas nuas, olhando uma pra outra. Cada segundo que passava aumentava a nossa angústia. Eu olhava para o chuveiro e nada de sair água. De repente ouvimos um barulho. [pausa] Logo depois uma fumaça começou a sair do teto. Era um cheiro muito ruim e começamos a gritar e correr para a porta. Eu olhava em volta e via o desespero. Quando eu fecho os olhos, [fecha os olhos]  ainda posso ver a cara da morte. Ela me olhava e sorria. Não pude fugir dela. [pausa]


Não quero que sintam pena de mim. Sou forte! A vida me fez assim. O que eu quero é que a minha memória não se apague. [pausa] Eles podem ter me matado, mas eu ainda vivo! [em voz alta, firme]

As 3 alunas voltam para a coxia lentamente, enquanto a música sobe.

ATO 4
            A música continua. A terceira personagem entra no palco através de uma abertura no pano que o divide. A música diminui até parar. Nesta primeira parte, todas as 3 alunas entrarão juntas no palco e cada uma contará uma parte da história da Rebeca.

A primeira aluna dá um passo à frente e começa a falar, enquanto as outras permanecem paradas, de cabeça baixa.

Rebeca 1: [entra em cena e anda lentamente até o centro do palco] Meu nome é Rebeca, sou italiana e judia. Tinha 36 anos quando fui para o país do meu marido. Ele era um alemão comerciante de tecidos. Antes de começar a namorá-lo, costurava para suas lojas. Fomos ficando apaixonados um pelo outro. Ele sempre dizia que eu era a melhor costureira da Europa. Acho que ele falava isso pra me agradar.

Tivemos uma filha linda, que tinha 8 anos naquela época. Sara era o nome dela, mas só chamávamos de Sarinha. Era o xodó da casa. [com alegria] Adorava ler. Ela viajava quando eu contava histórias antes de dormir.
Vivíamos como uma família feliz. Meu marido era ótimo pra mim. Estávamos muito bem. Pena que aquela alegria iria durar tão pouco.

A primeira aluna volta para a parte de trás do palco, ainda em cena.
A segunda aluna dá um passo à frente e começa a falar, enquanto as outras permanecem paradas, de cabeça baixa.

Rebeca 2: [entra em cena e anda lentamente até o centro do palco] Poucos dias depois de chegarmos à Alemanha, fomos surpreendidos com a notícia de que estaria proibido o casamento entre judeus e alemães. Ficamos sem saber o que fazer. Tínhamos muito medo. Pensávamos em voltar pra Itália. Mas como eu iria conseguir passar pela fronteira? Os judeus já estavam sendo enviados para os guetos.
Alguém nos denunciou, talvez um vizinho, e um dia os nazistas bateram em nossa porta. Meu marido disse que era alemão e até mostrou seus documentos. Os soldados, mesmo desconfiados, já se viraram pra ir embora quando ouvimos um grito do lado de fora: “A mulher é judia”! [com a voz modificada]
Fui levada à força junto com a Sarinha. Foi a última vez que eu vi o meu marido. [pausa] A última vez que ele viu a filha. [baixando a cabeça]
Fomos levadas ao gueto, mas ficamos por pouco tempo. Nos colocaram em caminhões, depois em trens superlotados. Não nos diziam para onde iríamos. Eu só pensava em proteger a minha menina.
A viagem de trem foi uma tortura. Uma pequena janela para todo o vagão. Era insuficiente para a entrada de ar, e difícil de respirar. Durante dias, passamos a conviver com o mal cheiro do lugar. Todas as nossas necessidades eram feitas ali, no mesmo lugar que comíamos. [cara de nojo]
Na verdade, comer era força de expressão. Durante todo o trajeto só nos deram sopa. Sopa de mato em meio a urina, fezes e outros dejetos humanos. Não! Não tentem imaginar! Mesmo que queiram, não se compara ao que eu vivi.
Quando chegamos, fomos separados. Homens para um lado e mulheres para o outro. Mesmo assim, ainda selecionavam os que pareciam ter boa saúde. Doentes, idosos e crianças muito pequenas não sobreviviam ao primeiro dia no campo de concentração.
Eu era magra, com aparência de frágil, e minha filha podia facilmente ser descartada por seu tamanho. Só um milagre nos salvaria naquele momento.
E ele aconteceu. Um dos oficiais que faziam a seleção era um cliente do meu marido, conhecia e admirava o meu trabalho como costureira. Sem falar comigo, para que os outros nazistas não pensassem que havia algum sentimento de pena por parte dele, ordenou que eu e a Sara fossemos levadas para o alojamento dos oficiais. Nós trabalharíamos para ele.
Aquela era uma exceção. A maioria, quase todas as pessoas que participavam, direta ou indiretamente do nazismo, tinha ódio dos judeus. Nós éramos considerados um inseto, nos matar era algo normal, como quem esmaga uma barata que invade a sua casa. [fala com espanto]
O mais difícil foi passar por tudo aquilo com a Sara. Eu faria de tudo pra não deixar ela sofrer. Falava até que tudo aquilo era um filme. Um faz de conta como nas historinhas que lia pra ela antes de dormir. Todos nós estávamos ali pra atuar num papel.
Quando ela ouvia os tiros ou escutava alguém chorando, gritando, dizia pra mim que não gostava de fazer aquele filme, que já estava na hora de voltar pra casa, estava com saudades do pai. [emocionada, sem choro] Eu só falava que o filme já ia terminar, faltava pouco. Faltava pouco!
Eu sabia que não estava morta ainda porque trabalhava pra um oficial. Tinha que aceitar tudo pra não ver a minha filha vulnerável.
Sofia não sabia, mas quando ela dormia o oficial que havia salvado as nossas vidas também tirava um pouco dela. Eu era violentada diariamente. Se existe um inferno, não deve ser pior do que aquela vida. [com a voz embargada]

A segunda aluna volta para a parte de trás do palco, ainda em cena.
A terceira aluna dá um passo à frente e começa a falar, enquanto as outras permanecem paradas, de cabeça baixa.

Rebeca 3: [entra em cena e anda lentamente até o centro do palco] Quando o oficial que me abusava foi transferido, não sabia se me alegrava ou se ficava triste. Por um lado ele me humilhava, me fazia sofrer, mas eu sabia que a minha filha estava viva. Com a saída dele, poderia a qualquer momento sair do alojamento e voltar para o campo. E lá eu sabia que não duraria um dia.

E o que ocorreu não foi diferente disso. Depois de uns dias, nos levaram para uma sala fechada. Eu sabia que era uma câmara e que saía um gás venenoso que matava as pessoas. Mas quem chegava achava que era um local pra tomar banho. Era isso que os nazistas diziam, que eles iriam tirar a sujeira do gueto e da viagem. Tiravam as nossas roupas, cortavam os nossos cabelos e pediam todos os objetos de valor, com a promessa de que devolveriam no final do “banho”.

Acontece que, naquele dia, havia algum problema com a câmara de gás. Acho que era por excesso de uso. Nos levaram para um grande paredão. Sabia o que iria acontecer. Presenciei vários fuzilamentos naqueles tempos de alojamento.

Sara estava muito nervosa, ficou chocada com toda aquela situação. Quando estávamos chegando perto da parede, falei baixinho pra ela: [pausa] “Sarinha, se acalme, está será nossa última cena. [respira fundo] Eles vão nos matar e nós vamos fingir que estamos mortas. [bem emocionada] Depois disso, vamos embora daqui. Saímos deste campo de concentração para entrar no coração de muitas pessoas. Porque eles podem nos matar, mas ainda viveremos”!

As 3 alunas voltam para a coxia lentamente, enquanto a música sobe.

ATO 5
            A música continua. A quarta personagem entra no palco através de uma abertura no pano que o divide. A música diminui até parar. Nesta primeira parte, todos os 3 alunos entrarão juntos no palco e cada uma contará uma parte da história do Aleksander.

O primeiro aluno dá um passo à frente e começa a falar, enquanto os outros permanecem parados, de cabeça baixa.

Aleksander 1: [entra em cena e anda lentamente até o centro do palco] Eu sou o Aleksander. Nasci e fui criado na Alemanha. Mas o fato de ser um alemão não importava muito para os nazistas. Sendo de família judaica eu não tinha nacionalidade, era somente judeu.

Meus pais tinham mais ou menos uns 40 anos quando eu saí de casa, ainda adolescente. Eles eram lavradores e não aprovaram a ideia. Eu era apaixonado por música, aprendi a tocar violino com um tio. Fui tentar a vida na cidade, pois sabia que no campo não ia ter futuro com a música. Ia tocar pra quem? Para os bois? [sorrindo] Não! Eu sonhava grande. E segui o meu sonho.

Tocava em restaurantes da cidade... vivia de favores na casa de parentes e amigos. Não era fácil, mas a atém que me alimentava bem. E com o pouco que ganhava dava pra comprar as outras coisas e viver bem. Mas o que me agradava mesmo era ver as pessoas se emocionarem com a minha música. No entanto, rapidamente aquilo tudo iria desmoronar.

O primeiro aluno volta para a parte de trás do palco, ainda em cena.
O segundo aluno dá um passo à frente e começa a falar, enquanto os outros permanecem parados, de cabeça baixa.

Aleksander 2: [entra em cena e anda lentamente até o centro do palco] Passei uns 5 anos da minha vida tocando violino na cidade. Até que veio a ordem para os judeus irem para os guetos. Fui um dos primeiros a chegar. E a sair também. Eu estava com uns 19 ou 20 anos, cheio de saúde. Logo que me viram disseram que iriam me levar para outro lugar. Estavam precisando de trabalhadores. Fazer o que? Os judeus não tinham escolha!
Fiz parte do primeiro grupo de judeus a chegar ao pior dos campos de concentração. Logo que saí do trem que nos levou, a primeira coisa que vi foi uma imensa chaminé, naquele momento inativo. Um soldado olhou pra mim e disse: [com voz diferente] “Gostou rapaz! Pois a chaminé é a única saída daqui.” [pausa] Somente depois que a chaminé começou a funcionar que entendi o que o soldado quis dizer com aquela frase.
Não sei se foi sorte ou azar, mas o fato de ter sido um dos primeiros a chegar me manteve vivo naquele campo. O preço? Vivenciar coisas que eu jamais imaginei que uma pessoa era capaz de fazer com o seu semelhante.
Meu trabalho era no forno e funcionava assim: [pausa] os judeus chegavam ao campo de concentração e os que eram considerados incapazes de trabalhar eram separados. Os nazistas mentiam dizendo que iam ser levados para tomar banho e o jogavam na câmara de gás. Lá, uma substância venenosa tomava conta do ambiente. As pessoas gritavam e choravam desesperadas, até que em 15 minutos em média não havia mais ninguém vivo. Os corpos eram levados para outra sala, onde se finalizava a inspeção para ver se ainda existia algo que pudesse aproveitar do cadáver, como um dente de ouro. Ali, umas três pessoas, contando comigo, se revesavam colocando os corpos em carrinhos e levando-os direto para o forno. A chaminé, então, era a saída de quase todos os corpos. E eu fui obrigado a participar desta matança em escala industrial.
Diziam que a cremação era a melhor maneira de se desfazer dos corpos. Mais fácil, rápido, higiênico e que não ocuparia o espaço de covas.
Se não bastasse ter que conviver diariamente com isso, ainda presenciei outras atrocidades no campo.
Algumas pessoas eram selecionadas para servirem de cobaias em experiências, como se fossem ratos de laboratório. Cérebros eram trocados de crânio. Braços e pernas recebiam outros corpos. Uma das experiências queria saber quantas vezes um bebê suportaria ter ossos do seu corpo quebrados. [balançando a cabeça negativamente]
Os corpos dos judeus também serviam, para fazer obras de arte... arte para os nazistas, é claro. Esculturas com ossos e até abajur feito de pele humana eram produzidos nesta época. Não havia limites para a loucura! [pausa] Já alguns oficiais tinham hábitos bizarros. Do alojamento, praticavam tiro ao alvo. [pausa] Qual era o alvo? Os prisioneiros!
Ninguém tem noção do que foi viver nos campos de concentração. Viver não! Sobreviver! Diariamente perder um pedaço de dignidade, de respeito pela humanidade. Muitos não suportavam o trabalho forçado, a perda da família e se matavam. Outros morriam de frio, especialmente quando colocavam os judeus no meio da neve, sem roupas, de castigo. Se é que precisava dar algum outro castigo. Estar ali já era o pior deles.
E para ser justo, nos campos de concentração não havia somente judeus. Além dos presos políticos, estavam também negros, homossexuais, ciganos e testemunhas de Jeová. Mas,para continuar sendo justo, nenhum deles tinha o tratamento que nós tínhamos. Até mesmo estes prisioneiros nos humilhavam. Fomos perseguidos pelos próprios perseguidos!

O segundo aluno volta para a parte de trás do palco, ainda em cena.
O terceiro aluno dá um passo à frente e começa a falar, enquanto os outros permanecem parados, de cabeça baixa.

Aleksander 3: [entra em cena e anda lentamente até o centro do palco] Depois de alguns anos, começamos a receber notícias de que a Alemanha estava perdendo a guerra. Mesmo sendo alemão, pela minha situação, eu não podia deixar de ficar muito feliz. Talvez houvesse esperança de tudo aquilo terminar.

Os nazistas deram ordem para esvaziar os campos de concentração. Queriam eliminar os vestígios de tudo que praticaram. Mataram um bom tempo na capacidade máxima, na máquina de produzir cadáveres. No final, quando a saída era inevitável, abandonaram tudo. E nos levaram juntos.

Iniciamos, então, uma longa caminhada que acabou se transformando na grande Marcha da Morte. Quase 2 milhões de judeus morreram neste momento. Estávamos no inverno europeu. Não havia água, nem comida. Andando a pé por centenas de quilômetros, as pessoas iam ficando pelo caminho.

Depois de 2 semanas caminhando sem parar, em meio a estradas cobertas de neve, adoeci. Sentia que estava muito fraco. Eu ardia em febre. Sabia que se parasse de andar morreria. Isso acontecia com todos. [pausa] Mas meu corpo não agüentou. [pausa] Eu parei!

Não saí do campo pela chaminé... aquele soldado nazista estava errado. Não pude marchar, mas creio que cheguei ao meu destino. Apesar de meu corpo ter ficado ali pelo caminho, na verdade eu não parei. Continuo andando cada vez que minha história é ouvida. [pausa] Todo aquele sofrimento pode ter me matado, mas eu ainda vivo! [em voz alta, firme]

As demais personagens entram em cena. Ficam os 12 alunos em cima do palco, juntos.

ATO 6
Todas as personagens estão aliviadas. Seus objetivos foram alcançados, estavam libertos para que suas histórias chegassem ao conhecimento de todos, para que a memória deles transformasse o ódio de hoje em paz. A lição que fica é a de que devemos respeitar as diferenças, devemos ser tolerantes.

As 4 personagens (12 alunos) saem do palco em direção ao público, misturando-se a plateia. Enquanto isso a música toca ao fundo e diminui lentamente

Ester: Sobrevivemos enquanto somos lembrados.

Rute: Nosso sofrimento deve ser visto como uma lição.

Rebeca: Um aprendizado para que não se cometam os mesmos erros do passado.

Aleksander: Devemos tolerar as diferenças, respeitando a todos.

Ester: Não importa a cor!

Rute: Não importa a beleza!

Rebeca: Não importa a religião!

Aleksander: Diga não ao ódio!

Cada um dos atores entrega a placa que a identifica para um dos presentes na plateia. As 4 personagens falam juntas, em voz alta, tocando no ombro das pessoas e olhando bem nos seus olhos.

 - Não me deixe morrer!

Terminado, sobem novamente para o palco, ficam de frente para o público e as cortinas se fecham. Encerra-se o espetáculo


FIM

Um comentário:

Jéssica lETÍCIA disse...

Olá, professor! Sou aluna do 2º ano do ensino médio do IFRN e faço parte de uma Cia desenvolvida a partir da matéria que estamos pagando, artes cênicas. Adoramos sua peça e gostaríamos de saber se para você está tudo ok se nós encenarmos ela! :)

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