Estou
na sala de vídeo da minha escola. Os alunos saíram mais cedo, pois hoje é dia
de discussão pedagógica. Os colegas brincam com o nome e falam que vamos
discutir, discutir e só discutir. Ou seja, nada de soluções, como sempre. Fico
na dúvida se penso o mesmo. Gosto de momentos de reflexão. Mas, por dentro, já
imagino que não vai ser um dia tranquilo. Quem conhece a minha personalidade
sabe da minha inclinação ao contraditório. Se todos dizem azul eu pergunto:
“por que não amarelo”? Se todos dizem “amarelo” eu digo: “por que não
vermelho”? Tem sido assim a minha vida toda.
Na
tela do projetor eu vejo números. Não, tem algo diferente ali: gráficos! Hum,
respiro fundo. São os dados de “aproveitamento da escola”. Uma colega levanta a
voz e diz que tem que reprovar os alunos que não querem nada mesmo, disto ela
não abre mão. Uma outra voz responde que não há nenhuma pressão para que os
alunos sejam aprovados. Eu, mais uma vez por dentro, finjo que acredito.
Se
existe uma coisa que os historiadores aprendem é que todas as formas de
comunicação são, em última instância, discursos. E, como tais, elaborados para
cumprir uma determinada finalidade. Nossas falas são cheias de discursos,
explícitos e implícitos. Pessoas que dizem sinceramente que não são
preconceituosas podem usar discursos intolerantes sem perceber isso. E não é só
a nossa fala em si. Todo o contexto que envolve o momento, os meios e o público
alvo deste discurso também contam para esta avaliação.
Eu
levanto a mão. Não é uma opção. Sinto uma verdadeira necessidade de ponderar.
Aqueles números me revoltam. Estamos numa escola? Parece que voltei 10 anos no
tempo e me vi discutindo as metas de vendas e margens de lucro com o meu
gerente. Não, eu não estava numa loja de departamentos. Não, aquilo não era uma
fábrica. Era mesmo uma escola. Mas não havia espaço para o João, o Pedro, a
Maria, a Ana. Tudo se resumia aos gráficos de resultados.
Sim,
eu acho que a escola é o lugar do saber, de desenvolvimento intelectual. Sim,
uso notas para avaliar meus alunos. Sim, quero que eles façam uma faculdade.
Sim, sim, sim. Mas nada disso tem sentido sem o aspecto humano. Como cobrar que
os professores façam todos os alunos aprenderem se ali tem gente que não quer?
E aquela que apanha dos pais porque fez a comida com muito sal? E o outro
perdeu a casa numa enchente e por isso mora numa quadra Poliesportiva? Não se
esqueça daquela que foi abandonada pela mãe e mora com o padrasto, que a
molesta. E também daquele que vê o pai em estado terminal, aguardando o dia em
que os aparelhos emitirão o som agudo da morte. Como cobrar que eles aprendam?
Mais do que aprender sobre as capitanias hereditárias ou fotossíntese, estes
alunos precisam sobreviver, ter dignidade, paz. Um colega imaginário me cutuca
e sussurra: “não é problema meu! O sistema é assim, não há o que fazer. Sou
professor, me pagam apenas para dar aula.”
Percebo
que falo em nome de mim mesmo. Paro, fico em silêncio, perco o foco no rosto
das pessoas ao redor e só enxergo vultos. Fantasmas de uma realidade que eu não
gostaria de presenciar. Por alguns momentos me lembro dos projetos escolares
que pregam a crítica ao individualismo da sociedade capitalista. Discursos
vazios. Caminhamos para uma escola cada vez mais fria. Salas lotadas,
professores em diversas escolas, os alunos se transformaram no número 14 ou 27.
O pensamento continua a vagar enquanto a reunião caminha para o fim. Ainda dá
tempo de lembrar dos comentários reprovando a posturas dos médicos da “nova
geração”, que nem olham para o rosto do paciente, raramente encosta nele e
quase sempre resume tudo no termo mágico “virose”. Fico me perguntando: onde
eles aprenderam a ser tão insensíveis? Bom, uma coisa é certa, ele foi nosso
aluno, não foi?
Terminou
a discussão pedagógica. Se tivesse que indicar apenas um sentimento ao sair
daquela sala eu teria dificuldade. Era um misto de tristeza, decepção, revolta,
sei lá. Então era isso, somos todos cúmplices de um sistema perverso. Aquele
médico aprendeu na escola a ser um número. Por que faria diferente? Nós, que
continuamos a pensar que o problema não é nosso, vivemos numa escola
esquizofrênica. Nossos projetos políticos pedagógicos buscam formar “cidadãos
plenos”, enquanto na prática estamos apenas produzindo mão de obra.
Almoço
e sigo direto para outra escola. A correria não me deixa parar para digerir
tudo aquilo que aconteceu em apenas uma manhã. Meu semblante reflete o
desânimo. É uma daquelas horas que dá vontade de largar tudo. Escrevo no
quadro, explico a matéria e uma piada aqui e outra ali (afinal, é sexto ano)
até são capazes de me tirar um sorriso. Passo tarefa. Uma aluna vem até a mim,
me abraça e diz: “que bom que você melhorou!”. Outra me entrega um bilhetinho que
está escrito: “você é o melhor professor do mundo”. Fiz força pra não chorar, é
verdade, mas por dentro podia sentir que o meu "tanque" encheu.
Combustível para mais alguns dias. Ufa!
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