quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Inimigo deletado

escrito por Dorrit Harazim, O Globo, 30/10/2011, p.6.

“Neste mundo, só impostos e a morte são inevitáveis”, já disse Benjamim Franklin. Mesmo assim, o mundo preferia ter sido poupado de assistir a morte de Muamar Kadafi. Não por ter sido um assassinato a sangue quente – afinal, a humanidade convive com uma fornida história de justiçamentos políticos. Mas por ter ocorrido sem filtros, de forma crua, feia e fétida. Plasticamente ofensiva a todos os nossos sentidos, em resumo.
Tudo, na forma como Kadafi foi abatido, causou engulho. Tivesse o seu corpo sido varado por obra de um improvisado pelotão de fuzilamento, ou mesmo enforcado on-line, como Saddam Hussein cinco anos atrás, a repulsa geral talvez tivesse sido menor. Mas o conjunto da obra, naquela quinta-feira 20 de outubro, esteve vários tons acima do suportável. Difícil foi diferenciar vítima e algozes, naquele chão batido de Sirte. Ademais, o bestial espetáculo adequadamente mal filmado.
Corte para outra execução, ocorrida três semanas antes, no lêmen. O clérigo Anwar al-Awlaki, cidadão americano e principal propagandista em língua inglesa da rede terrorista al-Qaeda, foi pulverizado por um avião não tripulado, que alvejou o comboio em que ele se deslocava. Não teve direito a processo, julgamento, condenação.
A operação foi executada pelo Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos (também responsável pela morte de Osama bin Laden em maio passado), em conjunto com a CIA. Operação cirúrgica, silenciosa, invisível – exceto para o secreto grupo de executores, aquartelados a três oceanos e dois continentes de distância.
Coube à jornalista Jane Meyer, em reportagem para a revista “New Yorker”, a primazia de um mergulho no mundo fantástico dos chamados drones, ou Veículos Aéreos Não Tripulados (UAV, sigla em inglês). Meyer assistiu à transmissão em tempo real de imagens que mostravam Baitullah Mehsud, um dos mais procurados terroristas do Talibã. Mehsud estava sendo filmado na casa do sogro, no Paquistão, numa noite de verão de 2009. Mais precisamente na laje da casa, onde podia ser visto reclinado, ao lado da mulher e de um tio médico.
As imagens feitas pela câmera infravermelha de um drone, e captadas a mais de três quilômetros de altitude, eram cristalinas. Em determinado momento via-se o terrorista, que era diabético e estava com o pâncreas arrebentado, receber uma injeção intravenosa. As imagens não tremem um milímetro sequer quando o avião lança dois mísseis Hellfire acionados da sede da CIA. E quando a espessa nuvem de fumaça se dissipa, é possível ver o que restou do terrorista: um torso. Outras 11 pessoas morreram, entre as quais sua mulher, sogro, sogra e onze guarda-costas.
O caso do americano al-Awlaki não foi muito diferente, e com ele morreu um segundo cidadão americano, contra quem não havia qualquer acusação. Ambos foram executados por robôs voadores capazes de encurralar e obliterar o inimigo com um simples apertar de botão à distância. Tudo perfeitamente clínico, cirúrgico, eficiente e invisível. O oposto da barbárie em Sirte.
A estreia dos UAVs no cenário da guerra global ao terrorismo ocorreu pouco depois dos atentados às Torres Gêmeas de 2001. Eram, na época apenas 50 unidades voadoras. Hoje o inventário do Pentágono lista 7 mil dessas aeronaves não tripuladas, numa variedade de formas e tamanhos impressionante. A ponto de a Força Aérea dos Estados Unidos já estar treinando mais pilotos de drones do que pilotos de aviões militares convencionais.
As quase 50 páginas que compõe o memorando secreto autorizando a execução de um cidadão americano, sem julgamento prévio, foram confeccionados um ano atrás e são o resultado de meses de deliberações jurídicas na Casa Branca de Barack Obama.
Embora um decreto presidencial de Obama tenha vetado assassinatos de líderes políticos que não estejam em guerra com os Estados Unidos, ele não proíbe a execução de alvos legítimos em caso de conflito armado.
A conclusão do documento produzido pela Advocacia Geral do Departamento de Justiça é que o clérigo poderia ser legalmente assassinado caso não fosse viável capturá-lo por ele se encontrar em meio a seguidores armados hostis. Ademais, o risco de despachar comandos terrestres para a operação e o risco de um imbróglio diplomático no lêmen acabaram justificando a opção da morte por videogame.
A turba de matadores improvisados de Muamar Kadafi também poderia argumentar que não seria viável mantê-lo vivo depois de capturado por Sirte ainda estar infestada de seguidores armados dispostos a morrer pelo “Irmão Líder”.
Que guerras civis não têm regras nem lei, e abrigam acertos de contas selvagens, é sabido. Por isso são acompanhadas com tanto opróbrio, medo e choque. Encrenca nova é um estado de direito declarar uma guerra sem fronteiras. E em nome dela sair matando inimigos mundo afora. Sem sequer manchar os dedos.

Dorrit Harazim é jornalista

Um comentário:

Sabrina Andrade disse...

Más gente, que textos ótimos em? Me motivam cada vez mais a Cursar história! Estarei acompanhando as outras postagens. Bjs :*

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